segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

O mundo 3D

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A existência de diversas iniciativas para a inclusão de modelos tridimensionais na World Wide Web convida à reflexão sobre as diferentes concepções de espaço sobre as quais se apóiam a Realidade Virtual e a Hipermídia.
Os ambientes de Realidade Virtual, independente do grau de imersividade proposto, são tipicamente construídos a partir da concepção do espaço como um existente anterior e independente dos elementos que o ocupam, cujas características fundamentais seriam a homogeneidade e a infinitude.
A Hipermídia, por outro lado, é constituída a partir de hiperconexões estabelecidas entre diferentes elementos, e assim constrói um espaço essencialmente relacional, ou seja, definido a partir das relações entre os objetos que o compõem e cuja própria existência depende, portanto, daqueles mesmos objetos.

Os primeiros resultados concretos no sentido de incluir modelos tridimensionais em sistemas hipermídia abertos foram publicizados em 1994, com a apresentação do protótipo de interface Labyrinth (M. Pesce e T. Parisi) durante a First International Conference on the World Wide Web (Web3D Consortium, 1999, s. p.) Ainda no mesmo ano a comunidade de desenvolvedores, atenta para a necessidade de apoiar a inclusão de cenas tridimensionais na World Wide Web em padrões não-proprietários (1) e cujo suporte independesse de plataformas específicas, iniciava o desenvolvimento das especificações que embasam a Virtual Reality Modelling Language, VRML (2).
O universo de iniciativas para a incorporação de elementos tridimensionais a sistemas hipermídia contempla hoje, entre padrões abertos e sistemas proprietários, uma razoável variedade de linguagens e aplicativos cujos representantes mais conhecidos provavelmente seriam o padrão internacional VRML97 e o Apple QuickTime VR (3) . Apesar de viabilizarem o estabelecimento de hiperconexões de, entre e para modelos tridimensionais e outros tipos de elementos, estas e outras tecnologias têm sido usadas sobretudo para a criação de cenas virtuais 'realistas'. Mesmo quando inseridas na World Wide Web, a grande maioria das cenas tridimensionais coaduna os princípios da realidade virtual em detrimento da singular espacialidade da hipermídia propriamente dita. Para discutir com propriedade as implicações dessa tendência, é apropriado recuperar alguns conhecimentos anteriores a respeito de realidade virtual e de hipermídia, sobretudo no que diz respeito às noções de espaço sobre as quais cada uma delas se fundamenta.

Realidade virtual

A expressão 'realidade virtual' é utilizada para denominar um conjunto bastante amplo de aplicativos e sistemas de base digital. As definições mais rigorosas restringem o campo da 'realidade virtual' a sistemas digitais tridimensionais multi-sensoriais e imersivos. Segundo essa abordagem, são considerados sistemas de realidade virtual apenas aqueles que

...aumentam a intensidade [da representação] através de técnicas descritas como imersão sensorial – ao invés de olhar para uma tela, por exemplo, uma pessoa fica cercada por imagens e som estereoscópico percebidos com auxílio de fones de ouvido e visores. Utilizando equipamentos especiais para entrada de dados, como luvas e roupas especialmente instrumentalizadas, as pessoas podem mover-se e interagir diretamente com os objetos do mundo virtual (Laurel, 1993, p. 54).

Conceituações mais abrangentes não são incomuns. Um número crescente de aplicativos e usuários considera que o campo da 'realidade virtual' inclui as mais variadas estratégias para representação do espaço tridimensional, inclusive as descrições exclusivamente textuais típicas dos Multi-User Dungeons (MUDs) e afins. Uma ordenação conforme os graus de envolvimento sensorial possível permite identificar pelo menos nove tipos diferentes de sistemas de realidade virtual atualmente disponíveis (Fragoso, 2002, no prelo). Todos esses sistemas, assim como as diversas definições e conceitos de realidade virtual, têm em comum, como ponto fundamental, a intenção de produzir a sensação de estar 'circundado' por um ambiente definido tridimensionalmente e com o qual é possível interagir. Na prática, na esmagadora maioria dos ambientes produzidos para as variadas vertentes da realidade virtual, essa disposição é operacionalizada em termos de fidelidade ao paradigma figurativo 'realista' que norteia a maior parte da produção visual ocidental pelo menos desde o Renascimento.

Sobretudo a partir da demonstração matemática da perspectiva central por F. Brunelleschi por volta de 1430 e sua sistematização por L. B. Alberti alguns anos depois (Della Pittura, 1435), o desenvolvimento das técnicas de representação visual tem sido predominantemente orientado pela intenção de produzir um ‘efeito de realidade’ suficientemente robusto para fazer ‘esquecer’ a instância mediadora. Apoiada na identidade entre os princípios da perspectiva central e o funcionamento da camera obscura, a fidedignidade atribuída às representações perspectivadas penetrou com sucesso o campo das imagens técnicas. Do daguerreótipo ao cinema, da televisão às imagens digitais, as mais diversas tecnologias de produção e reprodução de imagens fazem parte de um único “delírio de aperfeiçoamentos tecnológicos destinados a produzir uma impressão de ‘realidade’ cada vez mais impositiva” (Machado, 1984, p. 27 - a respeito da fotografia).

Apesar de a enunciação de imagens representando espaços digitalmente gerados não depender de tecnologias derivadas da camera obscura, também as representações de ambientes virtuais tendem a ser formuladas conforme o código da perspectiva central (ainda que numa versão adaptada (4)). Não por coincidência, a localização do ponto de vista para enunciação é referida, no jargão da computação gráfica, como 'posicionamento da câmera virtual'. Ao adotar estratégias de organização do espaço baseadas nos pressupostos da camera obscura, os algoritmos de visualização de modelos sintéticos abraçam, para a enunciação do espaço digital, um modelo cuja base científica são os textos de Euclides. De fato, Alberti inicia sua sistematização da perspectiva central no Livro Primeiro de Da Pintura com uma conceituação de ponto, linha e plano que remete diretamente à Geometria Euclideana (Alberti, 1989, p. 72). A descrição albertiana do processo de visão, que decorreria da emissão de ‘raios visuais’ pelo olho, concorda também com o proposto na Óptica de Euclides(5) (Boyer, 1974, p. 75).

... começando pela opinião dos filósofos, os quais afirmam que as superfícies são medidas por alguns raios, uma espécie de agentes da visão, por isso mesmo chamados visuais, que levam ao sentido as formas das coisas vistas. E nós imaginamos estes raios como se fossem fios extremamente tênues, ligados por uma cabeça de maneira muito estreita como se fosse um feixe dentro do olho, que é a sede do sentido da vista. E daí, como tronco de todos os raios, aquele feixe espalha vergônteas diretíssimas e tenuíssimas até a superfície que lhe fica em frente (Alberti, 1989, p. 75).

Já a organização geométrica do espaço a partir do ponto de convergência dos ‘raios visuais’ ultrapassa as proposições euclideanas e identifica a perspectiva central com a concepção espacial cartesiana. O espaço representado pelas imagens em perspectiva é um espaço coordenado homogêneo, estruturado em função de um ponto central (a origem). As mesmas características verificam-se na estruturação em três eixos cartesianos a partir da qual operam as diversas linguagens de programação e aplicativos de modelagem digital. Intrinsecamente antropocêntricos, tanto a perspectiva quanto o sistema de eixos coordenados não teriam sido considerados razoáveis sem a prévia aceitação do corpo humano como referência e medida satisfatórias, no período Renascentista (Wertheim, 1999, p. 38-39).

Não é surpreendente encontrarmos, portanto, acusações de que, vinculando-se ao paradigma representacional do Renascimento e desconsiderando as conquistas da arte moderna no que concerne a concepção e a representação do espaço, os sistemas de realidade virtual seriam essencialmente retrógrados. Argumentando que durante o processo de modelagem digital o espaço determinado pelos eixos cartesianos acaba perdendo importância diante da especificação dos objetos que o povoam e das relações que esses objetos estabelecem uns com os outros, L. Manovich vai ainda mais longe em sua crítica à realidade virtual:

...embora normalmente enunciados em perspectiva linear, os mundos virtuais gerados por computador são realmente coleções de objetos independentes, sem relação uns com os outros. Diante disto, a argumentação segundo a qual a computação gráfica tridimensional nos remete de volta ao perspectivalismo renascentista e portanto, do ponto de vista do abstracionismo do século XX, deveria ser considerada uma regressão, se revela infundada. Se aplicarmos o paradigma evolucionário de Panofsky à história do espaço virtual computadorizado, este não atingiu ainda a Renascença. Está ainda no nível da Grécia Antiga, que não podia conceber o espaço como uma totalidade (Manovich, 1996, s.p.).

A referência de Manovich ao paradigma evolucionário proposto por E. Panofsky diz respeito às diferentes formas de concepção e representação do espaço nos períodos clássico e moderno propostas por aquele autor em Die Perspective als symboliche Form (1927). Para Panofsky, prefigurou-se no período helenístico-romano um sistema de representação espacial que correspondia a uma noção clássica do espaço, cuja estrutura emergiria das relações entre os corpos físicos. A esse espaço, concebido como uma entidade descontínua entre os objetos, um "lugar de conflito entre os corpos e o vazio" (Campos, 1990, p. 43), Panofsky denomina 'espaço agregado' (Agregateraum). À concepção moderna de espaço infinito, homogêneo e cuja existência é anterior à dos elementos que o habitam Panofsky denomina 'espaço sistematizado' (Systemraum) (6). Na mesma obra, o autor propõe que as representações em perspectiva central corporificam o conceito moderno do espaço, diante do qual o espaço agregado se configuraria como uma simplificação primitiva.

Se a hipótese de uma evolução linear do conhecimento sobre a qual se baseia o argumento de Manovich é altamente questionável, não mais pertinente é a proposta de que a realidade virtual deva adotar estratégias modernistas de representação. Afinal, não há motivo para considerar mais meritória a repetição das expressões modernistas do que a cópia das formulações renascentistas ou mesmo das gregas.


Hipermídia

Criado por Ted Nelson na década de 1960, o conceito de hipermídia compreende a reunião de várias mídias em um suporte computacional (HIPERMÍDIA, 2006), constituídas por pequenos blocos de informação, denominados lexias ou nós, e que se comunicam através de linksWorld Wide Web interligasse computadores através de um modelo gráfico, Tim Berners-Lee ampliou consideravelmente o campo da hipermídia e a popularizou, o que, muito erroneamente, faz a algumas pessoas crer que ela se resume exclusivamente à web ou, ainda, que é estritamente textual. Porém, para Lucia Santaella (2001, p. 392), “a hipermídia significa uma síntese inaudita das matrizes da linguagem e pensamento sonoro, visual e verbal com todos os seus desdobramentos e misturas possíveis”. não-linearmente (LEÃO, 1999). Ao propor que a

É justo lembrar que a hipermídia não surgiu com Ted Nelson: sendo ela a união de diversos meios através de uma estrutura não-linear, podemos pressupor a existência anterior da multimídia, sem a qual a hipermídia não existiria.

O teatro grego, que conjugava música e literatura, é a forma mais antiga de união com êxito entre diversas formas de arte que conhecemos hoje. Com a ruptura do mundo greco-romano e a consolidação do domínio cristão sobre o Ocidente, a arte dos antigos, a partir de então considerada herege, foi esquecida e só não sumiu completamente graças à manutenção do Império Bizantino. Um dos principais exemplos dessa nova abordagem foi a proibição, por parte da Igreja, do uso de instrumentos musicais nos cantos da liturgia católica – a música “oficial” – e que perdurou por centenas de anos, sob a alegação de que o único instrumento musical criado por Deus é a voz humana, sendo todos os demais instrumentos pagãos. Outro pensamento comum na época é o de que as harmonias da música polifônica seriam obra demoníaca, fato que levou o papa João XXII a banir esse tipo de música em 1322. O resultado dessa proibição é uma música plana que chamamos cantochão, cuja variante principal é o canto gregoriano.

Pouco a pouco, as restrições eclesiásticas foram sendo vencidas, incorporando na música litúrgica as características da música secular, que sempre se manteve alheia às decisões papais. Por essa época, o mundo vivia um período conhecido por Renascimento, focado no ser humano e não em Deus, e caracterizado pela busca e valorização de temas greco-romanos, ou seja, pela tradição secular/pagã. É nesse ambiente que surge a ópera, uma tentativa de resgate do antigo teatro grego, fruto de intensos debates entre intelectuais da época, dentre os quais Vincenzo Galilei, pai do matemático e astrônomo Galileu Galilei. Consta que as primeiras óperas foram Dafne (1597) e Eurídice (1600), de Jacopo Peri, sendo que a primeira não chegou intacta até nós, e a segunda uma versão de pouco valor, senão histórico. Consolidando a forma e realizando várias inovações, Claudio Monteverdi escreve La Favola d’Orfeo (A fábula de Orfeu, 1607), uma das maiores obras-primas da história da Música.

No início do século XIX, 200 anos depois do sublime Orfeu, a ópera estava tomada por apresentações espetaculosas mas vazias, clichês musicais e lirismo exagerado. Era a grand opera française, cujo maior representante foi Jakob Meyerbeer. Contra esta corrente surge, na Alemanha, o compositor Richard Wagner.

Wilhelm Richard Wagner nasceu em Leipzig em 1813. Foi um profundo admirador da literatura, tendo, aos 13 anos de idade, traduzido os 12 primeiros volumes da Odisséia de Homero diretamente do grego. Interessou-se pela música apenas mais tarde, após ouvir Beethoven. Assim, decidiu conciliar suas duas maiores paixões. Suas primeiras óperas foram em estilo convencional, todas com libreto escrito por ele mesmo, fato esse que se repetiria até o fim de sua vida.

Exilado em Zurique, Suíça, após participar de uma revolução fracassada em Dresden, escreveu A obra de arte do futuro (1849), onde define os conceitos de gesamtkunstwerk, ou obra de arte total. Nestes escritos, rejeita a ópera lírica, considerada superficial, um mero espetáculo para divas e tenores (PACKER e JORDAN, 2001). Diz que “a maior obra de arte conjunta é o Drama” (WAGNER, 1849) e cita as artes que devem acompanhá-lo: a arquitetura, para a montagem de um teatro acessível visualmente a todos, em que nenhuma parte da cena seja perdida, e no qual a imersão ocorra (Wagner foi o criador do fosso, o espaço sob o palco onde a orquestra se esconde, gerando um efeito que ele chamou de “abismo místico”, e o primeiro a diminuir drasticamente a iluminação da platéia durante a apresentação); a pintura de paisagens, para uma cenografia perfeita; a atuação; a dança; a fala; a poesia; a música. O resultado final deve ser uma peça extremamente realista. Não uma ópera, mas sim um “drama musical”.

Entre 1848 e 1874 escreveu sua obra-prima, a tetralogia Der Ring des Nibelungen (O anel dos nibelungos), composta por O ouro do Reno, As Valquírias, Siegfried e Crepúsculo dos deuses. É uma peça que dura de 14 a 18 horas, o que nos leva a pensar: como pode se manter a unidade e coerência em um conjunto de óperas tão grande? Wagner solucionou esse problema criando o leitmotiv, motivo carregador. O leitmotiv é um trecho sonoro (uma melodia, um ritmo, um certo grupo de instrumentos) vinculado a um personagem, objeto ou ação recorrente. Sendo assim, temos leitmotive de uma mocinha ou de um vilão, de vários objetos e lugares, etc. Mas não é tão simples quanto parece: Wagner faz um complexo jogo de sons de acordo com o que acontece em cena. Por exemplo, quando determinado personagem aparece, surge seu tema; mas quando este personagem se associa a outro, os dois temas são tocados. Em alguns momentos, o tema é tocado sem o personagem ou objeto estar em cena, indicando que ele se aproxima ou fazendo uma referência a ele. Os leitmotive são variáveis: soa glorioso num momento de júbilo, mas transfigura-se num motivo sombrio durante uma cena trágica. A complexidade é tal que, em algumas cenas, para simbolizar a inversão de algum fato, uma perda ou evento similar, o próprio leitmotiv é tocado de forma inversa.

É inegável a semelhança entre o leitmotiv e a lexia: ambos são trechos de informação que, ao estabelecerem várias conexões (actemas), formam um conjunto coerente (episódio) (LEÃO, 1999).

Em meados do século XIX, quando Wagner propôs sua arte do futuro, não havia um único teatro em toda a Europa capaz de suportá-la. Com a ajuda do Rei Luís II da Baviera, do Kaiser Guilherme da Prússia, do Imperador Pedro II do Brasil, de sociedades wagnerianas e com o dinheiro arrecadado em concertos, construiu o Teatro de Bayreuth, na cidadezinha de mesmo nome, seguindo o modelo dos antigos teatros gregos, em semicírculo, para que os espectadores estivessem sempre de frente para o palco. Fundava, assim, o teatro de ópera moderno, em que a imersão é plena. Pôde, finalmente, estrear O Anel dos Nibelungos em 1876, reapresentado desde então quase todo ano no Bayreuther Festspiele – o Festival Anual de Bayreuth.

O legado que deixou foi tão grande que, entre os compositores da segunda metade do século XIX, havia os wagnerianos e os não-wagnerianos. Ademais, é tido como o “inventor da música de cinema”, mesmo tendo morrido antes de sua criação (sua marca na sétima arte é ainda maior, já que as salas escuras dos cinemas são intensamente baseadas no Festspielhaus). Sua obra inspirou músicos, escritores, filósofos, roteiristas e desenhistas. Richard Wagner morreu em Veneza em 1883, mas sua obra, à frente daquele tempo, parece até mesmo à frente do nosso.

Mapa de assentos do Teatro de Bayreuth
Fonte: <http://www.digischool.nl/>

Somar ou subtrair?

A Realidade Virtual se apresenta como o mais recente desenvolvimento de uma linhagem de tecnologias de comunicação cuja principal intenção é propiciar ao receptor a ilusão de estar na presença imediata do objeto da representação. Tal enquadramento na linhagem predominante da história dos meios visuais de representação determina que, pelo menos inicialmente, os sistemas de realidade virtual permaneçam atrelados a formas de representação espacial consideradas ‘realistas’ e ‘transparentes’ no presente contexto cognitivo e cultural.

Condenar o desenvolvimento dos sistemas desse tipo construindo apologias de quaisquer outras concepções espaciais corresponderia não apenas a propor outras certezas sobre a natureza do espaço que nos circunda, mas sobretudo a reafirmar a necessidade de que as representações visuais mantenham-se em estrita conformidade com os existentes do mundo físico. Tal postura equivaleria, ainda, à negação do enorme potencial das muitas aplicações da realidade virtual que dependem inexoravelmente da imediata atribuição de fidedignidade à representação multi-sensorial e/ou interativa, por exemplo os simuladores educacionais e de treinamento, a telerobótica ou as técnicas telecirurgícas.

Sem deixar de reconhecer as várias conquistas das atuais linhas de desenvolvimento da realidade virtual, é preciso admitir que as iniciativas para incorporação de modelos tridimensionais a sistemas hipermídia têm produzido resultados bastante insatisfatórios. Não é por acaso que o antigo VRML Consortium teve seu nome modificado para Web3D Consortium em 1999. Em sua apresentação das linhas-mestras do grupo para o ano de 2000, o presidente do Web3D Consortium defendeu mais uma mudança estratégica, da proposta inicial de incorporação de tridimensionais à World Wide Web para a concentração de esforços no desenvolvimento de versões tridimensionais da interface Windows (Trevett, 2000, s.p.). A transferência dos esforços de pesquisa e desenvolvimento do Web3D Consortium para a questão das interfaces tridimensionais não sinaliza grandes avanços em relação a alguns problemas fundamentais da modelagem tridimensional computadorizada, sobretudo aqueles oriundos de paradoxos da abordagem em 'janela para o mundo' característica da Desktop Virtual Reality.

A incorporação de ambientes tridimensionais a sistemas hipermídia tem sido compreendida como o acréscimo de ‘janelas’ para visualização de modelos, ou seja, como a especificação de superfícies planas ‘para além’ das quais residiria a tridimensionalidade. Predominantemente, as hiperconexões estabelecidas entre partes de elementos 3D tendem a representar situações comuns da vivência cotidiana. Um exemplo desse tipo de link 'realista' seria a porta da sala de entrada da cena virtual Seaside (Web 3D Media Group, 1999) que estabelece um percurso entre os lados ‘de dentro’ e ‘de fora’ de uma edificação virtual. O espaço da escritura hipermidiática é, no entanto, dotado de peculiaridades que viabilizam diversas outras formas de incorporação da terceira dimensão espacial. Trata-se de uma estrutura constituída a partir de hiperconexões que podem estar ancoradas em elementos de variadas dimensionalidades: não é incomum encontrar links que vinculam planos ocupados por escrita verbal a imagens bidimensionais estáticas, por sua vez ligadas por hiperconexões a representações visuais em movimento, e assim por diante.

Do mesmo modo que um ponto, uma reta ou uma seqüência de palavras podem ser inscritos numa folha de papel com duas dimensões Euclideanas, também os modelos tridimensionais ‘cabem’ facilmente no espaço multidimensional da hipermídia. Para além das janelas para visualização em perspectiva de ambientes virtuais ‘realistas’, a efetiva incorporação da realidade virtual à hipermídia passa pelo estabelecimento de hiperconexões desvinculadas da obrigatoriedade de verossimilhança com a experiência espacial cotidiana. Um primeiro movimento nesse sentido seria, sem dúvida, o estabelecimento de percursos entre elementos tridimensionais e objetos de outras dimensionalidades, nos moldes do que já é comumente realizado por exemplo entre textos e fotografias, de gráficos para partes de desenhos e destas para seqüências animadas. Para tanto, é fundamental superar a impressão de que o atual modo de incorporação de ambientes tridimensionais a sistemas hipermídia permite a construção de cenas virtuais condizentes com a efetiva realidade de um espaço físico 'real' que habitamos. De fato, adotar essa opção 'tradicional' significa somente impor às mídias digitais a específica noção de espaço que tem norteado o desenvolvimento das imagens técnicas, da fotografia à realidade virtual. Certamente não seriam suficientes os alertas de que esta restrição força a hipermídia a retroceder à concepção espacial de Descartes ou Newton, desconsiderando proposições mais recentes tanto da Física quanto, no que concerne as representações do espaço, da Arte Moderna.

Evitando sempre o equívoco básico de considerar uma ou outra forma de representação espacial melhor desenvolvida, é fundamental perceber que, a menos que abram mão de suas motivações 'realistas', os modelos da realidade virtual não poderão ser plenamente incorporados à hipermídia. Sem essa convergência, estaremos abdicando não apenas das fascinantes possibilidades de navegação em sistemas hipermidiáticos multi-sensoriais e imersivos, mas, talvez ainda mais lamentavelmente, anunciando a morte da hipermídia por ocasião da popularização de dispositivos multi-sensoriais e tridimensionais de enunciação e entrada de dados (visores com sensibilidade cinética, luvas de dados, etc.).

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